Joelton Nascimento*

 

Será que nunca faremos senão confirmar A incompetência da América católica Que sempre precisará de ridículos tiranos?

Caetano Veloso, Podres Poderes (1984)

  1. A crise atual é uma crise das bases fundantes das economias capitalistas.1 Ela não começou em 2007-2008, ela se revelou ali, mas precisamente como nos mostra a língua, ela se re-velou também, voltou a tornar-se escondida no alarde de suas consequências imediatas. A crise insiste em parecer apenas um desarranjo provisório da relação entre as finanças e o setor produtivo do capitalismo, que podem ser rearranjados para dar continuidade a um modo de crescimento econômico saudável. Compreendida deste modo, a crise atual do capitalismo não é nem de direita e nem de esquerda. Ela é o plano de fundo onde possíveis discursos e práticas, às quais podemos atribuir o rótulo de esquerda e direita, agem e reagem, constituindo parte de governos à frente de Estados ou não.
  2. É por essa razão que uma crise econômica grave nas economias capitalistas tende a levar a uma contestação popular do governo do Estado no momento da eclosão da crise, seja ele de esquerda ou de direita. Na Irlanda, o partido de centro-direita Fianna Fáil foi derrotado após décadas no poder; na Letônia, a coalizão conservadora que sustentava o primeiro ministro Ivars Godmanis naufragou fragorosamente com a crise. Mas na América Latina, por sua vez, governos de esquerda é que foram atingidos no momento da crise e, principalmente por isso, foram a partir daí duramente contestados. O peronismo kirchenerista da Argentina foi derrotado em eleições após 12 anos no governo e o seu sucessor mais liberal também não foi capaz de entregar muita coisa além da continuidade da crise, sendo ele também fortemente contestado. Saques e greves gerais fazem parte do noticiário político da América Latina, especialmente de Argentina e Venezuela nos últimos dias, mostrando claramente que a crise capitalista atual atingiu o continente de modo que o receituário tradicional de esquerda ou de direita não é capaz de lhe fazer frente.
  3. Como bem o diz o filósofo italiano Giorgio Agamben “…é apenas na casa em chamas que se torna visível pela primeira vez o problema arquitetônico fundamental”.2 O Estado capitalista submetido a longas e graves crises não pode mais oferecer nada além de sua função elementar: garantir a ordem por meio da violência.
  4. A garantia da lei e da ordem é o clamor do Estado capitalista em crise, ainda que esta garantia seja feita contra a lei e em meio à desordem. Esse paradoxo se apresenta claramente na fórmula agambeniana da força de lei (ou, força de lei sem lei).3 O Estado moderno, diante de uma crise capitalista profunda e grave, tende a retornar ao seu fundamento autoconstitutivo: a garantia da estabilidade pela violência. Ninguém – que eu saiba – expressou melhor e mais sinteticamente tal tendência do Estado do que Anselm Jappe: “o Estado pode ocupar-se do bem-estar de seus cidadãos ou não; pode garantir a educação ou não; pode regular a vida econômica ou não; pode abertamente estar a serviço de um pequeno grupo ou de um único indivíduo, ou, ao contrário, afirmar servir ao interesse comum: nada disso é essencial. Mas um Estado sem homens armados que o defendam do exterior e que salvaguardem a ‘ordem’ interior não é um estado. Sobre este ponto, podemos dar razão tanto a Hobbes quanto a Carl Schmitt: a possibilidade de administrar a morte permanece o pivô de toda construção estatal”.4
  5. Se isso já se mostra verdade há tempos, onde está a novidade da ascensão da extrema-direita brasileira, aglutinada em torno do militar reformado Jair Bolsonaro, atualmente líder das intenções de voto para a presidência da república? Uma das novidades é o giro a mais que ele opera na garantia da lei e da ordem: se por um lado o Estado brasileiro já é o terceiro que mais encarcera no mundo 5, no Brasil torna-se necessário o compartilhamento da violência soberana com alguns “particulares”. Não é por acaso que uma das principais pautas da candidatura da extrema-direita é a revogação do estatuto do desarmamento e da diminuição de critérios para a compra e circulação de armas de fogo.
  6. Pode parecer, à primeira vista, uma incongruência que se diga que a violência estatal e seu compartilhamento fazem parte do mesmo movimento. Contudo, como bem o diz Jappe, “o reforço do monopólio da violência pelo Estado e sua transferência aos particulares não estão em contradição: a violência é o núcleo do Estado, e sempre foi. Nesses tempos de crise, o Estado se transforma de novo no que foi historicamente em seus primórdios: um bando armado. As milícias se tornam polícias ‘regulares’ em numerosas regiões do mundo, e as polícias se tornam milícias e bandos armados”.6
  7. Nos trinta anos nos quais o deputado Jair Bolsonaro exerceu mandatos no parlamento, ele se manteve na sustentação corporativista de uma das polícias mais excessivas do mundo em termos de brutalidade. Não a defendeu como um conjunto de funcionários públicos e trabalhadores, mas na qualidade de executores de um “trabalho sujo”, que consiste em constantemente limpar o país de sua ampla marginalidade. O discurso de Bolsonaro vem sendo proferido há décadas e é tolerado por muitos e combatido apenas moralmente e juridicamente por alguns: trata-se do discurso dos policiais que, precisando fazer o trabalho sujo de manter a estabilidade pela violência excepcional, encontrou como obstáculo os ativistas de direitos humanos, de religiosos caridosos e de esquerdistas “idealistas”, dentre alguns outros. Esses discursos podem ser lembrados claramente, por exemplo, no chamado Massacre de Carandiru em 1992, quando 111 encarcerados foram mortos durante uma rebelião no presídio. O coronel que comandou o massacre foi Ubiratã Guimarães e apesar de condenado em primeira instância, em 2001, foi eleito deputado estadual por São Paulo e absolvido em 2002. Se não tivesse sido assassinado em 2006, talvez fosse Guimarães e não Bolsonaro a estar nas pesquisas como líder de votos. Em 2016, todos os policiais envolvidos tiveram seus julgamentos anulados e ninguém foi punido.7 O espaço de extermínio aberto no Carandiru se arregaçou pois o que o reforça constantemente é a concretude de uma economia capitalista em crise permanente e o fato de que a sociedade brasileira tolerou ou ofereceu uma crítica apenas moral e/ou jurídica aos discursos e às práticas do extermínio de vidas humanas julgadas não-merecedoras de viver.
  8. Como já bem mostrou Maurilio Botelho, nas últimas décadas, o Rio de Janeiro foi o laboratório de uma economia militarizada, onde a segurança patrimonial e o extermínio são estabelecidos como os zênites de um novo tempo. Como concluem Botelho e Sardinha: “uma reportagem recente do Jornal O Globo destacou o otimismo da associação de atacadistas distribuidores de mercadorias do estado do Rio, que comemorava a significativa redução do roubo de cargas. Se algum representante das companhias de seguro fosse entrevistado, também demonstraria sua satisfação com a intervenção militar, já que em vários bairros ao redor do Chapadão, nos últimos anos, as solicitações de seguro de automóveis são sumariamente rejeitadas. O general responsável pela intervenção argumentou que esse sucesso se deve a um ‘incremento da atividade policial’. Ao que tudo indica, o índice da atividade policial é proporcional à improdutividade econômica de parcelas crescentes da sociedade”.8
  9. Que “parcelas crescentes da sociedade” são essas? Os mesmos autores respondem: “em 2017, 68% de todas as vítimas de homicídio no estado do Rio de Janeiro eram pretos ou pardos. Entretanto, para demonstrar a cor preferencial do alvo estatal, esse número sobe a 77% no caso de homicídios decorrentes de intervenção militar’. Isso num estado em que, segundo o IBGE, apenas 41% da população é preta ou parda. O qualificativo de ‘nível africano’ ao índice de desenvolvimento em favelas do Rio revela não apenas a mera metáfora estatística, mas o nexo histórico-estrutural de nossa sociabilidade racista. Nos territórios marginalizados da cidade, pretos e favelados são ‘recursos humanos supérfluos’ (Rusche e Kirchheimer) a serem ‘queimados’”. A conclusão dos autores não poderia ser outra: “o sucesso da intervenção militar no Rio de janeiro deve ser avaliado pelo modo como os indesejáveis são eliminados diante de sua presumida ameaça à sociedade de mercado. Só assim é possível medir o grau de violência estatal necessário para manter um mercado cada vez mais restrito. Qualquer outro metro baseado em princípios elevados é pura idealização frente a uma sociedade em ruínas”.9
  10. A extrema-direita é a única a enfrentar sem idealizações o imenso trabalho sujo que a economia capitalista em crise terminal tem diante de si: submeter de armas em punho a superfluidade massiva de populações humanas, expulsas da sociedade da imposição do trabalho. Sua ascensão eleitoral se deve principalmente a isso. Ao lado do adágio “quem não trabalha, não deve comer” se soma o “com a brasa pouca, meu pirão primeiro” que constituem as razões para a adesão do eleitorado às propostas da extrema-direita: mulheres, negros, LGBT, imigrantes e indígenas se tornam alvos privilegiados em uma contraditória narrativa, a de que são menos capazes para o trabalho e ao mesmo tempo são ameaças à empregabilidade restante.
  11. A esquerda eleitoral, por seu turno, permanece nutrindo pueris idealizações, sendo a principal delas a de que é a única capaz de diminuir o quantitativo dos lucros de banqueiros e fazer crescer os lucros e as benesses do capital produtivo, aquele que também “beneficia quem trabalha”. Nos debates eleitorais, trata-se, antes de tudo, de quem fala mais alto que “gerará mais empregos e renda”. Mal se percebe que isso alimenta a ideia de que quem não trabalha não deve mesmo comer sem contar com a caridade de alguém ou do coletivo. É chegado o tempo em que o discurso do extermínio da superfluidade do trabalho não pode mais ser contraposto aos discursos contra os ricos que ganham sem trabalhar. Ou se estilhaça a sociedade fundada da socialização pelo trabalho seguindo a dificuldade de uma saída de seculares modos de vida mediados pelo trabalho e pelo dinheiro ou os campos de extermínio se reabrirão em um horizonte próximo.

 

Notas:

1 – Anselm Jappe. As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor. Tradução: José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2006.

2 – Giogio Agamben. O homem sem conteúdo. Tradução: Claudio Oliveira. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p.184

3 – Giorgio Agamben. Estado de Exceção. Homo Sacer II, 1. Tradução: Iraci Polleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 53 e ss.

4 – Anselm Jappe. Crédito à Morte. A decomposição do capitalismo e suas críticas. Tradução: Robson J. F. de Oliveira. São Paulo: Hedra, 2013, p. 71.

5 – Cf. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-terceira-maior-populacao-carceraria-aprisiona-cada-vez-mais

6 – Anselm Jappe. Crédito à morte, op cit. p. 70

7 – Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_do_Carandiru

8 Maurilio Botelho. Guerra aos vagabundos. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/03/12/guerra-aos-vagabundos-sobre-os-fundamentos-sociais-da-militarizacao-em-curso/ e Maurilio Botelho; Thiago Sardinha. O sucesso da intervenção militar. Segurança patrimonial e extermínio no Rio de Janeiro. Disponível em: https://blogdaconsequencia.com/2018/08/24/o-sucesso-da-intervencao-militar-seguranca-patrimonial-e-exterminio-no-rio-de-janeiro/

9 – Maurilio Botelho; Thiago Sardinha. O sucesso da intervenção militar. Op. Cit

 

* Joelton Nascimento é doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas.

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